domingo, 4 de novembro de 2012

borges-pessoa-proust-lembrança-memória-percepção-sonho

Pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção bóia entre dois mundos [3/p.466], sustenta em círculo, a seu redor, o fio das horas, a ordenação dos anos e dos mundos [4/p.15] e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho [3/p.466]. Rostos que na verdade são máscaras, palavras de linguagens muito antigas [4/p.166], num segundo, eu passava por sobre séculos de civilização [4/p.15]. Coexistem na minha atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam [3/p.466]. E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia? [3/p.466] Eu sonho e por detrás da minha atenção sonha comigo alguém. E talvez eu não seja senão um sonho desse Alguém que não existe [3/p.467]. O movimento parado das árvores; o sossego inquieto das fontes; o hálito indefinível do ritmo íntimo das seivas; o entardecer lento das coisas, que parece vir-lhes de dentro a dar mãos de concordância espiritual ao entristecer longínquo [3/p.468]. Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade do espaço [3/p.468-469]. A nossa vida não tinha dentro. Éramos fora e outros [3/p.468], serei todos ou ninguém. Serei o outro [4/p.166]. Recompunha aos poucos os traços originais do meu próprio eu [4/p.16]Assim acordava, meu espírito agitando-se para tentar saber, sem o conseguir, onde me encontrava, tudo girava ao meu redor no escuro, as coisas, os países, os anos. Meu corpo, entorpecido demais para se mexer, buscava, segundo a forma do seu cansaço, localizar a posição dos membros para daí deduzir a direção da parede, a situação dos móveis, para reconstruir e denominar a moradia em que se achava. Sua memória, a memória de suas costelas, dos joelhos, dos ombros, lhe apresentava sucessivamente vários quartos onde havia dormido, ao passo que em seu redor as paredes invisíveis, mudando de lugar conforme o aspecto da peça imaginada, giravam nas trevas [4/p.16]. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entresonhos [1]. A verdade é que, [4/p.16] devido à essas evocações turbilhonares e confusas [2/p.18], ao eterno estar no bifurcar dos caminhos [3/p.467], mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo [1].

________

ELEMENTOS:

1. BORGES, Jorge Luis. Funes, o Memorioso. Trad. Marco Antonio Franciotti. In:______. Prosa Completa. Barcelona: Ed. Bruguera, 1979, vol. 1., pp. 477-484. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/funes.htm>. Acesso em: 02 nov. 2012.
2. ______. O sonho. In: ______. Poesia. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p.166. 
3. PESSOA, Fernando. Floresta do Alheamento. In: ______. Richard Zenith (org). Livro do Desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 466-472.
4. PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Trad. Fernando Py. São Paulo: Abril, 2010, Clássicos Abril Coleções, v.34.

sábado, 13 de outubro de 2012

desejo-corpo-deleuze-kafka-foucault-nietzsche-tom zé

Isso respira, isso aquece, isso come, isso caga, isso fode [1/p.11] isso encontra-se metamorfoseado num inseto monstruoso [3/p.13], que para nada presta, que se defende, que se recusa ao serviço e à comunicação [1/p.18], comunicação desorganizada, onde só há ruído, um ciciar doloroso, impossível de se evitar, que só no primeiro momento mantém a clareza anterior das palavras, para destruir seu som de tal forma que não sabe-se ao certo se havia ouvido direito [5/p.18]. Isso que é produzido em seu próprio lugar [1/p.20], que serve de superfície para o registro de todo o processo de produção do desejo [1/p.24]. Desejo sorri, e esquece, pois desejo é uma criatura do momento, anda pelos caminhos intermináveis de seu corpo, certo de que ele, ou ela, está só: o único habitante do reino crepuscular [3/p.24]. Diferenças podem, assim, dizer respeito ao modo de sujeição [3/p.27]existe um código de registro particular que não coincide com o código social ou que só coincide para parodiá-lo [1/p.29]avante! A nossa velha moral é coisa de comédia [4/p.13], aquele que nasce sem nome e sem cabedal não pode trazer o peso de um pecado original [6], e pode então ser infinitamente livre e errante, de absoluta irrestrição [4/p.157].

________

ELEMENTOS:

1. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. 1 ed. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010.
2. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. 7 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002.
3. KAFKA, Franz. A metamorfose. Trad. Marcelo Backes. São Paulo: L&PM POCKET, 2010.
4. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
5. SANDMAN. São Paulo: Editora Globo, n 16, fevereiro de 1991.
6. ZÉ, Tom. Pecado Original. In: Correio da Estação do Brás. São Paulo: Continental, 1978.